sábado, 4 de junho de 2011

O VELÓRIO

O VELÓRIO
Ali inerte deitado com o olhar virado para o céu, ainda que de olhos fechados podia ver através do teto dado sua nova condição, uma nova vida. Mãos cruzadas sobre o peito, em completo e absoluto silêncio postava-se indiferente a dor que provocava sua morte em seus entes mais queridos que não aceitavam tão inesperado desenlace, para eles absolutamente precoce. Jazia coberto por flores amarelas que lhe enchiam o caixão e que pareciam vivas e regadas pelas lágrimas sofridas dos seus familiares e amigos. Ainda vigiado de perto pelo seu peri-espírito, nem com este interagia. Sabia que o seu espírito a estas horas flutuava de felicidade povoando mundos abstratos pela liberdade que obtivera ao se livrar do seu corpo, agora nada mais que natureza morta pronta para se desintegrar voltando à sua condição inicial de pó para reintegrar-se ao universo. Certamente seria dentro de pouco tempo poeira atômica. Pessoas choravam porque não sabiam do destino daquele corpo que há tão pouco tempo pertencera a este mundo por longos sessenta e um anos. Ele, já então finado sabe o tamanho do tempo que viveu, que certamente lhe parece muito longo e portanto, não tem de que reclamar pelo fato de ter deixado a vida terrena. Olhando-se bem para a sua face pálida, exangue, notava-se que estava satisfeito, pois na realidade demonstrava a satisfação do seu espírito o qual viveu a angústia dos últimos trinta dias, período em que viveu entre a vida e a morte. Tamanha era a satisfação do seu espírito que o julgava egoísta. Sabia no entanto. que era normal a atitude do espírito ao querer desencarnar para voltar ao seu mundo, mesmo quando ainda não se purificara de todo. Compreendia o castigo que era para ele viver a condição de espírito encarnado por conta de sofrer as provações e as expiações que o levaria a purificação. Em seu descanso eterno que acabara de começar, o finado não mais interagia com os seus circunstantes, todos pesarosos buscando uma explicação que lhes parecesse lógica para justificar a morte. Diante de tal realidade tinha este vontade de lhes transmitir porque a vida culmina com a morte, uma vez que à esta altura esta verdade não mais lhe era estranha. Mas como lhes falar se estava morto, não podia mais sequer utilizar seu espírito para se comunicar. Sabia-o já em outra esfera, no mundo espiritual, na vida eterna. Então, pensava: -Quem garante que não voltaria a compor materialmente outro ser humano, que receberia o mesmo espírito que desencarnara de seu próprio corpo? Pensava ainda, por que tanto choro se os que choram nada sabem do que comigo acontecerá? Diante destas indagações, lamentava-se por não poder consolar seus entes queridos e tão sofridos. Já sabendo de tudo que lhe aconteceria por que não lhe era dado o direito de tranqüilizar seus amados filhos, a viúva, os parentes, os amigos? Isto lhe parecia injusto. Por outro lado não lhe cabia penetrar tão profundamente nos mistérios divinos. Resignava-se, até mesmo porque já não sofria diante das emoções humanas, pelo contrário, já nem era mais humano, mas apenas matéria orgânica em vias de desintegração. Logo voltaria a compor os elementos químicos da natureza. Pensava no vescículo bíblico constante de Eclesiastes assegurando que surgimos do pó e para o pó voltaremos. Pensava por ouvir dizer, já que sequer jamais lera uma palavra da Bíblia. Vinha-lhe então a vontade de dizer todas as coisas que não dissera antes de morrer, muitas vezes por conveniência, outras para preservar sentimentos diversos ou até para não magoar. Mesmo assim achava que devia ter dito sempre, tudo que sentia, só assim poderia ter sido realmente verdadeiro. Mas sabia que assim como nem só do pão vive o homem, nem só da verdade ele também vive. Mesmo morto, de semblante indiferente a dor que provocava nos seus entes queridos, imaginava que não era bem assim, podia sentir num fundo um sofrimento póstumo. Mas o que fazer se não mais lhe era possível interagir com os condolentes, amigos e parentes todos tristes e constrangidos diante da sua morte até certo ponto precoce. Sentia-se algo responsável por tal precocidade pois ele mesmo colaborara com o fato. Chegara a pensar que criara uma situação de tragédia anunciada. Enfim tomava consciência pós-morte que nada fizera nos últimos tempos para evitar tão indesejado e prematuro desenlace. Na realidade fora negligente com a sua saúde, não acreditara na perecividade da matéria. Por outro lado pensava existir outra vida, mas concreta que abstrata por ser eterna. Neste momento eximia-se de quaisquer tipos de críticas ou imputações. Tinha consciência de que escolhera a vida que lhe parecera melhor. Sabia também que nenhuma seria perfeita e finalmente compreendia que o limite entre a vida e a morte é indefinido. A morte lhe parecia única certeza da vida , um axioma, uma fatalidade atroz que a mente esmaga. A morte é o maior algoz da vida. Aos que morrem a vida eterna, aos que ficam a possibilidade de morrer a qualquer instante da vida.
Por José Antonio da Silva - Cabo Frio 04/06/2011.

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